Em 1994, na Estrada Nacional 103, dois militares da GNR foram baleados à queima-roupa, naquele que foi um dos crimes mais brutais da década de 90 em Trás-os-Montes.
Uma impressão palmar de Sérgio Casca na viatura da Brigada de Trânsito (BT) foi o suficiente para o condenar a 20 anos pelo duplo homicídio dos seus colegas na BT.
Desde o princípio que clama a sua inocência. Saiu ao fim de 10 anos, 6 meses e 22 dias, passados, maioritariamente no Presídio Militar de Santarém.
Jornal Nordeste (JN): Casado recentemente e com uma filha pequenina, como é que reagiu a sua família quando recebeu a sentença de 20 anos?
Sérgio Casca (SC): Uma pessoa quando está numa situação dessas sente a maior revolta do mundo. Foi um rombo que a minha família levou! A minha mulher nunca duvidou de mim porque esteve sempre comigo, ela e os meus pais. Nem podia duvidar. Uma pessoa consciente sabe onde estava, a que horas chegou e a que horas saiu. É difícil é para os meus pais entenderem a Justiça. Na altura, tinham 61, 62 anos, pessoas da aldeia, pouco letradas, que sempre acreditaram na Justiça, como é que eles entendem uma situação destas, depois de saberem que àquela hora, das 19:30 às 23:30, eu estive com eles em Peleias. Além da minha esposa e dos meus pais, também esteve lá em casa, durante toda a noite, uma vizinha nossa, que também testemunhou.
JN: Ou seja, não foi só o depoimento dos seus familiares a ser desvalorizado em julgamento. Houve outras pessoas a testemunharem?
SC: Sim! Houve mais pessoas que testemunharam... Inclusive, um rapaz que trabalha na Câmara Municipal de Vinhais, mais velho do que eu, e que é de uma aldeia próxima da minha. Ou seja, eu para chegar à minha aldeia tenho, obrigatoriamente, de passar pelo meio da aldeia dele, que é Sobreiró de Cima. Nas terras pequenas, toda a gente se conhece e o rapaz foi testemunhar a que horas me viu passar. São cinco pessoas a testemunharem. Não é só o testemunho dos meus familiares... E mais, no regresso a Bragança, à saída de Vinhais, encontrei uma barragem da GNR. Eu vinha com a minha esposa e parei aí para falar com eles. Esses militares da GNR vieram, também, testemunhar à hora que eu estive com eles.
JN: O facto dos depoimentos de familiares serem, em parte, desvalorizados, até se compreende. Mas como explica os outros testemunhos não terem sido levados em linha de conta?
SC: O depoimento dessa vizinha, já na altura era uma pessoa com 70 anos, mas não era maluca, foi, então, desvalorizado pelo tribunal pelas seguintes palavras textualmente: “por a senhora ser de proveta idade, podia-se ter trocado no dia”. A pessoa sabia muito bem o dia que foi porque no dia seguinte, de manhã, o filho dela telefonou de Lisboa a perguntar se eu é que tinha sido morto. Como tinha a fama de mau, pensava que tinha sido eu o assassinado. E a mãe disse-lhe que não porque tinha estado toda a noite comigo. E é uma data que fica marcada na memória.
E o rapaz de Sobreiró de Cima, que me viu passar, perguntaram-lhe porque é que se lembrava dessa noite. E ele disse que tinha chegado da vinha mais cedo para ir ver a bola, que nesse dia dava um jogo qualquer das competições europeias. As pessoas sabem, não são tontas, não se enganam assim com um acontecimento dessa natureza.
JN: Na sua opinião, passados 16 anos, que possibilidades encontra para o crime que vitimou os dois militares da GNR. O que é que pode ter acontecido naquela estrada?
SC: Há a possibilidade que foi abordada na reportagem da SIC, que é o tráfico de droga. Mas há outras tantas que podiam ter estado na origem do crime.
“O comandante não se recorda. Teve uma falha de memória! Mas, na altura, pintou um
quadro que não deixava dúvidas nenhumas”
JN: Mas essa para si é aquela que tem mais lógica?
SC: Sim!
JN: E os militares estariam envolvidos?
SC: Isso não sei! Em todas as entrevistas que já dei, eu nunca acusei, nem tenho provas para acusar ninguém. Eu fui acusado sem provas e sei o que me custou. Eu não faço esse tipo de juízo, nem posso fazê-lo.
JN: Na altura, aquilo que se constava era que havia muita corrupção no seio da GNR. Sabia o que acontecia na Corporação, sabia o que os outros militares faziam?
SC: Sabia, claro que sim! Toda a gente sabia. Mesmo as classes altas, ao nível do comando, estavam conscientes desses factos.
JN: Nunca se sentiu tentado a fazer parte do outro grupo?
SC: Não porque eu venho de uma família remediada. Não é uma família pobre... E sempre me incutiram que mais vale pouco e andar de cabeça levantada do que andar aí com um bom carro, uma boa casa e ser apontado. “Olha, aquele levou-me 50 euros. Olha, aquele chulou-me tanto!” Porque as pessoas dizem isso. Na frente, desfazem-se em prendas, mas, depois, por trás criticam. Ninguém dá nada se não for pressionado. Agora, nunca me senti tentado.
JN: Na reportagem da SIC, curiosamente, o comandante da altura, o major José Lopes Pereira, não se recorda já do que disse em julgamento sobre se o carro tinha sido ou não lavado.
SC: Não! O comandante não se recorda. Teve uma falha de memória! Mas, na altura, pintou um quadro que não deixava dúvidas nenhumas. Não sei o que é que se passou! Acho muito estranha essa falta de memória. Mas se lerem o processo vão lá encontrar, também, excertos muito estranhos que não foram explicados.
JN: Na época, segundo consta, tinha a fama de implacável, uma reputação de não facilitar, falo, especificamente, das multas. Isso contribuía para que não tivesse muitos amigos. Correcto?
SC: Sim! Eu era muito rigoroso. E é verdade que não fiz muitos amigos, mas os poucos que fiz acho que são bons, verdadeiros. E têm-mo demonstrado onde me encontram que ficou ali qualquer coisa.
JN: Se pudesse recuar no tempo, alteraria a sua atitude ou faria algo de diferente no que diz respeito à sua defesa?
SC: No que diz respeito à minha atitude não, porque foi sempre a mesma e foi a atitude correcta. Em relação à minha defesa, sim, sem dúvida, porque as pessoas ficaram com uma ideia errada. A minha defesa foi conduzida por dois bons advogados daqui de Vinhais. Talvez, um bocado inexperientes neste género de situações, mas não tenho razão de queixa deles. O dr. João Nabais só se juntou à equipa para a fase do julgamento.
JN: Não acha que a contratação do advogado João Nabais para a equipa terá influído na sua defesa?
SC: Hoje sei que sim. Até porque foi-me transmitido isso há muito pouco tempo por uma pessoa amiga de que eu tinha cometido um erro de casting ao contratar o João Nabais para me vir defender.
JN: Essa contratação pode ter transmitido a ideia de que os advogados daqui não eram competentes o suficiente e pode mesmo ter prejudicado a sua defesa. Ainda por cima, uma figura pública, vinda de Lisboa...
SC: O João Nabais só veio por indicação de um dos meus advogados que conduziu o processo. Não fui eu que disse, quero o João Nabais. Ele é que mo indicou como sendo uma figura de topo naquela altura e eu achei que seria benéfico ele vir. Afinal, parece que não, parece que me foi prejudicial.
JN: Um dia antes do crime, detiveram um indivíduo por excesso de álcool com 1,025 g/l. Na manhã seguinte, levaram-no ao tribunal na viatura T313? Aquela que foi usada pelos agentes assassinados e onde foi encontrada a sua impressão palmar.
SC: Sim, fomos na mesma viatura. No T313.
“Toda a gente sabia. Mesmo as classes altas, ao nível do comando, estavam conscientes desses factos [corrupção na BT-GNR]
JN: E porque é que o advogado do detido não foi ouvido no seu julgamento, já que afirmou tê-lo visto em tribunal na manhã do crime?
SC: Isso terá que ser perguntado aos advogados de defesa, pois já nessa altura se conhecia essa acta do tribunal e que o advogado tinha sido Lisandro Rodrigues. Se não foi chamado, assim como outros meus colegas, foi porque os meus advogados entenderam que não deviam ser. Aí, acho que agiram erradamente. O processo devia ser entregue aos acusados, mas não é isso que se passa. Eu só tive acesso ao meu processo após o primeiro recurso para o Supremo. O que não faz sentido! Nem depois da sentença... A mim, ainda hoje me acusam por ter ficado calado, mas eu só não falei por causa de uma estratégia de defesa dos meus advogados. Outra estratégia errada... O advogado que eu tenho hoje é de opinião precisamente contrária. Ele defende que devia ter falado logo de início. Agora, eles não me deixaram fazer isso. Eles mantiveram-me calado até ao último momento. Quando uma pessoa vai cega para julgamento, tem de confiar plenamente na pessoa que o defende.
JN: E então o facto de haver duas testemunhas a garantir que Mário Marques lhes havia dito, semanas atrás, que tinha apreendido um quilo de droga?
SC: Disse-o à mãe, esta repetiu-o em julgamento, e disse-o a uma ex-namorada, de nome Paula, que apesar de ter sido entrevistada pela PJ, não a conseguiram encontrar para prestar depoimento no tribunal. Não compreendo! Ainda por cima, o comando disse em tribunal que não tinha havido nenhuma apreensão de droga.
Por: Bruno Mateus Filena - Jornal Nordeste
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